Traumas causados pelo fundamentalismo
religioso
Ao estrear como Presidente da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara Federal, o deputado Marco Feliciano, é aplaudido de pé por
grupos religiosos, deixando no ar uma nuvem de surpresa ao fazer declarações
racistas e preconceituosas em pleno século XXI contra grupos religiosos que não
são da igreja dele. O que mais surpreende é ver uma das mais importantes
Comissões da Câmara Federal que luta contra a violação dos direitos humanos,
receber como seu presidente justamente alguém que viola esses mesmos direitos.
Até onde isso vai parar? Que consequências pode-se
esperar de uma gestão intolerante e preconceituosa? Estaríamos diante de um
exemplo de fundamentalismo religioso?
De
forma nenhuma quero gerar polêmica, ofender ninguém ou atacar religiões e
credos. A intenção é pura e clara quanto à consciência que me leva examinar o
recrudescimento do papel da religião na sociedade atual, principalmente no que
tange às manifestações do fenômeno do fundamentalismo religioso, do qual também
já fui vítima.
Segundo
Leonardo Boff (L. Boff, Fundamentalismo: a globalização e o futuro da
humanidade – Rio de Janeiro. Sextante, 2002, p. 25), o fundamentalismo pode ser
definido da seguinte maneira:
Não
é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É assumir a
letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no
processo sempre cambiante da história, que obriga a contínuas interpretações e
atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial. Fundamentalismo
representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de
vista.
Fundamentalista é, portanto, aquele que está mais
interessado em seguir os escritos da doutrina do que realmente vivificar as experiências
do espírito. Uma interpretação, sem dúvida, cheia de riscos para uma mente
fundamentalista, pois com a preservação da doutrina, significa que o único
caminho para se chegar à verdade é através da forma de aprendê-la em detrimento
de experimentá-la com todas as alternativas e de cercear a convivência com o
diferente. A forma de aprender a verdade é, portanto, absoluta.
A
verdade bíblica, por exemplo, simplesmente deve ser aceita sem a menor chance
de ser questionada ou interpretada pela mente humana, que para os
fundamentalistas, é ofensivo a Deus por ser um livro perfeito, inspirado por
Deus, que deve apenas ser acatado sem contestação.
![Caixa de texto: Esses são apenas alguns exemplos do que se pode encontrar na Bíblia:
• “Deus mata todos os animais dos egípcios com uma forte pestilência. Nenhum sobreviveu à pestilência (Êxodo 9:3-6)”.
• “Deus mata todos os animais dos egípcios com uma chuva de granizo (Êxodo 9:19-21,25)”.
Mas eles já não haviam morrido com a pestilência?
• “Os gigantes existiam antes da inundação (Gênesiss 6:4)”.
• “Noé, sua família e os animais da Arca sobreviveram à inundação (Gênesis 7:23)”.
• “Mesmo depois da inundação os gigantes continuaram existindo (Números 13:33)](file:///C:\Users\Getulio\AppData\Local\Temp\msohtmlclip1\01\clip_image001.gif)
Tomando
uma direção mais especulativa, é provável que determinadas autoridades
religiosas fundamentalistas ainda promovam ações violentas para nossa época,
vinculadas às manifestações de um radicalismo religioso, que além de gerarem
traumas individuais, podem resultar em reações a traumas coletivos decorrentes
das transformações culturais da Era Moderna.
Consequências traumáticas oriundas do fundamentalismo religioso,
que a americana Marlene Winell denominou de Síndromes do Trauma Religioso (STR),
vem sendo tratadas há mais de 20 anos por Winell, que dedica sua vida ajudando
pessoas se recuperarem dos traumas psicológicos causados por crenças religiosas
e fundamentalismo religioso.
Winell é filha de missionários da Assembleia de Deus e
acreditava em tudo que lhe fora ensinado a respeito das escrituras sagradas.
Entretanto, traumatizada pelos condicionamentos fundamentalistas, passou a
viver uma vida dramática pensando que seria punida no grande Armagedon, porque
temia não ter a aprovação de Deus. Depois de anos de sofrimento atormentada
pelos seus próprios pensamentos, se especializou em desenvolvimento humano e
estudo da família, lançando seu livro intitulado Leaving the Fold – A Guide for Former Fundamentalists and Others
Leaving their Religion, sobre como se livrar das consequências de religiões
fundamentalistas.
Segundo Winell, os sintomas da STR vão desde a ansiedade,
depressão e dificuldades cognitivas até à degradação do relacionamento social,
decorrentes de ensinamentos e práticas religiosas.
Tal
como Winell, eu também fui vítima da lavagem cerebral de religiões fundamentalistas,
concomitante com as mais variadas superstições que foram inseridas em nossa
mente desde crianças. Essas crendices vão desde as manifestações negativas do
chamado ‘olho gordo ou mau-olhado’ até aos comportamentos estranhos como
encontrar objetos perdidos com 3 pulinhos oferecidos a São Longuinho. Se tudo
isso foi aprendido como verdade, o fato de
acreditar no fim do mundo era incontestável.
![Caixa de texto:
As superstições são crenças baseadas na ideia de que determinadas atitudes, números ou palavras trazem azar ou sorte. Pode ser de âmbito pessoal, religiosa ou cultural, apoiadas na ignorância, no desconhecido e no medo. Algumas pessoas podem sentir no corpo seus efeitos, tais como cansaço, desânimo e pensamento recorrente de que a vida não dá certo por causa disso.
A superstição está presente em todas as religiões e age de forma nociva em razão de levar o indivíduo a temer coisas inócuas à fé em coisas absurdas. Os supersticiosos estão inclinados a acreditar em tudo, menos em si mesmos.
Alguns exemplos de superstição: quebrar espelho dá 7 anos de azar; guarda-chuva aberto em casa trás infortúnios; colocar a vassoura atrás da porta faz a visita indesejável ir embora; lavar a cabeça quando a mulher estiver menstruada tira-lhe a fertilidade; passar debaixo de escada dá azar; ter uma ferradura na porta trás sorte; bater na madeira 3 vezes afugenta os maus agouros; galhinho de arruda na orelha afasta mau-olhado; deixar bolsa no chão perde dinheiro; deixar o sapato virado traz azar; orelhas quente é alguém falando mal da gente, e tantas outras.
Repito: nenhuma dessas ou de outras práticas tem o mínimo valor para a vida humana. São realmente crendices idiotas, formas infundadas de crer em certas coisas por incapacidade de resolver um problema ou modificar uma situação.](file:///C:\Users\Getulio\AppData\Local\Temp\msohtmlclip1\01\clip_image003.gif)
Tinha
5 anos de idade quando meu irmão primogênito apareceu um dia afirmando convicto
que o ‘mundo seria destruído no ano 2000’, pois assim proclamava as escrituras.
Informações como essas, podem causar impactos terríveis e consequências
incalculáveis, pois em um instante eu almoçava tranquilamente com a minha mãe,
e no outro, estava completamente desnorteado no quarto rezando e pedindo perdão
a Deus pelos meus pecados, ato que repeti por muitos anos a fio.
Educado
no catolicismo, cheguei a ser coroinha e quase segui o celibatário católico
como única opção de ter meus pecados perdoados e ser merecedor do perdão de
Deus. Passei anos atormentado acreditando que o mundo acabaria realmente no ano
2000, e todos os dias contava o resto de tempo que ainda viveria pensando na
possibilidade de me casar, ter filhos, uma profissão. A consequência foi uma
vida de afastamento social causada por profunda timidez, dificuldade de
relacionamento com amigos na escola e medo constante de tudo que pudesse mudar
a minha rotina. Só venci a timidez 30 anos mais tarde.
Bem, o fim do mundo não aconteceu, mas logo surgiu outro
foco impregnado de especulação para aterrorizar o mundo nos 12 anos seguintes
em cima do calendário Maia. Estudiosos, cientistas e previsões de todo o
planeta prediziam o fim dos tempos em 21 de dezembro de 2012, que também não
aconteceu.
![Caixa de texto: A Folha de São Paulo de 27 de abril de 2008 publicou que famílias deixaram cidades capixabas e mineiras, rumo a Ecoporanga (ES). Elas creem no retorno de Cristo e que o fim dos tempos está próximo. (Cíntia Acayaba da Agência Folha, em Ecoporanga-ES).
“ Uma construção no meio do nada chama a atenção dos moradores de Ecoporanga (328 km de Vitória). Os lotes, porém, não estão à venda. Para viver ali, é preciso pagar outro preço: vender bens, deixar parentes, construir a própria casa e, sobretudo, acreditar que o fim dos tempos está próximo”.
“São condições impostas pela evangélica Igreja Tabernáculo Vitória, fundada em 1985, que acredita no retorno de Cristo, anunciado por fenômenos como terremotos e o aquecimento global”.](file:///C:\Users\Getulio\AppData\Local\Temp\msohtmlclip1\01\clip_image004.gif)
Igrejas
como a Testemunha de Jeová, continuam pregando que o mundo tentado por satanás
um dia vai acabar e só elas sobreviverão ao grande Armagedon, época em que o
Cristo (que provavelmente já reencarnou várias vezes), descerá dos céus para separar
o joio do trigo e só os crentes sobreviverão para viverem eternamente no
Paraíso.
Pessoas
como estas, vivem angustiadas e temerosas pelo iminente fim do mundo e esperam
ser conduzidas ao céu em nome de uma fé cega e irracional, pois foram, desde
crianças, habituadas a esperar por esta catástrofe. Mas não é só isso. Além da
permanente angústia, são impedidos de ofender a Jeová e desde cedo são
proibidos de celebrar aniversários, festejar o carnaval, páscoa, natal, ano
novo e quaisquer outras datas de origem pagã, só
porque não são mencionadas nas Escrituras Sagradas. Algumas impedem o corte de
cabelo, ver televisão, usar determinadas roupas, entre outras coisas que não
fazem o menor sentido para nossa época.
Em um país laico como o Brasil, era de se esperar que a
pluralidade de religiões trouxesse mais liberdade de expressão quanto a religar
o indivíduo com a sua divindade e, assim, cada um respeitasse o espaço do outro
e encontrasse a religião que melhor lhe conviesse para crescer e evoluir
espiritualmente. Mas não é o que acontece.
No cristianismo fundamentalista, por exemplo, o indivíduo
já nasce pecador e, portanto, é considerado um depravado e deve lutar pela sua
salvação para não perecer eternamente no inferno. Uma criança que desde cedo aprende
a ver figuras dantescas do suposto inferno bíblico e precisa reverenciar uma imagem
triste e por vezes sangrenta de Jesus pagando pelo pecado dela, é, no mínimo,
perturbadora. As consequências futuras são incalculáveis e podem se manifestar
na sua vida adulta, por serem doutrinadas e aterrorizadas por memórias de
imagens do inferno e do apocalipse, na forma de ataques de pânico, TOC, Fobia
Social e outros transtornos psicológicos. Casos e casos podem ser enumerados
para exemplificar fracassos e frustrações, em nome de uma religião.
Em meados de 2002, meu amigo P. deixou mulher, filhos,
amigos e mudou-se para uma cidade próxima à São Paulo, onde tem um templo da
religião que ele seguia. A esposa, sem alternativas, acabou acompanhando o
marido na mudança, mas a filha infelizmente não arredou o pé de São Paulo onde
passou a viver uma realidade muito diferente da que tinha no âmbito familiar.
Meses depois, completamente alucinado com os ensinamentos
e os níveis que estava galgando dentro do templo e determinado a participar de
todas as reuniões pertinentes à sua religião, P. foi convidado a realizar
serviços remunerados na compilação e diagramação de livros religiosos para
posterior publicação, onde se sentia útil fazendo um trabalho de relevante
altruísmo. Com o relacionamento mais estreito, as fichas foram caindo ao
perceber o comportamento inadequado de pessoas consideradas líderes e
preletores ilustres de tão nobre conceito espiritual, onde no púlpito pregavam
uma coisa e fora dele faziam outra completamente diferente. Por esta razão, ele
desistiu do emprego e, consequente, de seguir aqueles ensinamentos.
Essa
pessoa vive até hoje insatisfeita com as escolhas que fez para defender uma
religião com unhas e dentes, pela qual tomou decisões importantes para sua vida
vislumbrando tornar-se um ser mais evoluído, e, no entanto, foi atropelado pela
frustração de um pseudo encantamento religioso que ainda está presente nas sequelas
e feridas não curadas, causadas em si mesmo e em sua família.
Recentemente
li o caso de uma australiana (Nicky Davis) que sofreu abuso de autoridades
religiosas na infância. O trauma foi tão grande que 38 anos depois, ainda chora
desesperadamente ao lembrar-se de um padre deitado sobre seu corpo de 11 anos,
espremido no sofá da sala da casa da família, em um subúrbio de Sydney. Para os
pais fanáticos, era motivo de orgulho ter uma autoridade da igreja visitando a
casa. Já Emma Foster, outra vítima de abuso sexual por parte de religiosos
católicos, se matou aos 26 anos (jan-2008) com uma overdose de comprimidos, em
Melbourne. “Levei para um colégio religioso, porque fui criada na igreja e
achava que elas estariam seguras ali”, desabafa Chrissie, mãe de Emma, falando
de suas filhas.
Os
abusos com Emma começaram quando tinha 6 anos de idade. Cresceu com os
fantasmas do passado lhe atormentando e começou a se punir, ficou anoréxica e
finalmente desistiu de viver depois de ser internada duas vezes em clínicas
psiquiátricas, tentando se recuperar do trauma. Sua irmã Katie, que também foi
abusada pela mesma autoridade religiosa, passou a beber ainda jovem e, hoje,
precisa de cuidados 24 horas por dia, decorrente de um atropelamento que sofreu
sob o efeito da bebida.
Essas
crianças, quando tomam consciência, buscam esquecer os fatos ingerindo drogas,
viram alcoólatras e depressivas, sofrem de distúrbios psicológicos e problemas
alimentares, passam a viver uma vida miserável distante da sociedade, sem
conseguirem estabelecer relacionamentos, mesmo com os familiares. Na maioria
das vezes procuram apoio psiquiátrico e passam a tomar remédios fortíssimos, às
vezes escravizando-as pelo resto de suas vidas, enquanto que a psicoterapia é
uma potente ferramenta de ajuda que pode causar mudanças positivas em tempo
relativamente curto.
Técnicas
complementares como a PNL (Programação Neurolinguística), EFT (Emotional
Freedom Techniques), EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing – ARASI,
Diana et al. Trauma e EMDR – Uma nova abordagem terapêutica. Brasília: Nova
Temática, 2007), fazem parte da oferta de tratamento de
traumas psicológicos. Essas técnicas visam à elaboração do material traumático
de modo a promover a despotencialização para tirar o poder perturbador, de modo
que se o paciente acessar as memórias, elas não terão mais nenhuma perturbação,
deixando-o livre para seguir em frente. Evidentemente, cada indivíduo é único e
o tratamento deve ser diferenciado. Portanto, a utilização de qualquer técnica
deve respeitar o processo individual, sendo que outras formas de atuação também
devem ser consideradas e utilizadas concomitantemente, inclusive as abordagens
cognitivas.
Existem
muitos exemplos de homens e mulheres que venceram as adversidades da vida para
se tornar pessoas de sucesso ou em pessoas melhores após uma situação
traumática, como o pai ou mãe que em vez de se entregarem ao sofrimento e à dor
de perder um filho, transformam o trauma em um aprendizado para ajudar outros
pais que vivenciaram a mesma experiência. Isso se chama resiliência, termo
emprestado da física que indica a capacidade que alguns materiais possuem de
melhorar a sua qualidade após serem submetidos a situações extremas. O mundo
não está repleto de pessoas resilientes, mas é uma qualidade que pode ser
aprendida e desenvolvida na psicoterapia e, quem sabe, daqui algumas centenas
de anos o mundo poderia ser perfeito, mesmo com altos e baixos, por que não?
Infelizmente,
o fundamentalismo existe em todo o mundo: O fundamentalismo Islâmico, o
fundamentalismo norte-americano e tantos outros. Nesse instante, provavelmente
pessoas estão se vestindo com bombas para matar pessoas em nome de um suposto
Deus que o levará a viver no paraíso saboreando tâmaras com lindas mulheres. De
tudo isso, um fato é verdade: O que seria do amarelo, se todos gostassem do
azul?
Se
eu fosse um ET observando o comportamento humano, não só diante do fanatismo
religioso, talvez dissesse: “Atenção Planeta XPTO... informando que os humanos
acreditam em coisas imaginárias só porque alguém lhes ensinou, e em livros
antigos que ninguém sabe exatamente quem os escreveu, mas os seguem com
invejável dedicação. Fim da mensagem”. Também pensaria – como ET - que se
humanos não conseguem chegar à conclusão sobre algo que não deve ser
questionado, é porque está muito errado. Como seres inteligentes e lógicos que
pensam ser, como é possível ainda se perderem nos caminhos que supostamente os
levariam a Deus?
Gosto
de simplificar. Diante de uma religião autoritária e patológica, prefiro andar
sozinho e sarcasticamente respeitar o que está escrito de forma sagrada:
“Diga-me com quem tu andas e direi quem tu és”. Por isso, entre mim e Deus não
há intermediários, seja padre, pastor, rabino, mãe ou pai de santo. A conversa
geralmente é de homem para homem.
Assim,
diante de um ser que ocupa o cargo de Presidente da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara Federal e dá sinais de ser uma pessoa preconceituosa,
principalmente pelas diferenças religiosas, fico imaginando se realmente não
vale mais a pena eu continuar na minha posição de ET, onde, pelo menos, consigo
ter um pouco mais de coerência e clareza de pensamento.
OOOps!
Será que ET tem religião?
Getúlio
Gomes
Pós
Graduado em Gestão Financeira e Gestão Estratégica de Pessoas para Negócios,
Psicanalista, Trainer em PNL e Coach Sistêmicos, consultor, palestrante, autor
do livro “Sai desse corpo que não te pertence – Uma maneira divertida de
exorcizar a autossabotagem”. Email:
getulio.consultor@terra.com.br.
TEXTO PUBLICADO NA REVISTA PSIQUE.